Ao comparar dados relativos à resposta imune resultante de uma infecção natural por dengue com os da ativação imunológica decorrente de vacinas contra a doença, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) identificaram marcadores moleculares que podem servir, no futuro, para o desenvolvimento de novas vacinas e terapias contra esse vírus. O trabalho também reiterou a eficácia da resposta imune induzida por dois imunizantes já disponíveis no mercado: o Q-Denga, desenvolvido pelo laboratório japonês Takeda Pharma e atualmente distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e o Dengvaxia, do laboratório francês Sanofi- Pasteur. Ambos utilizam a tecnologia de vírus atenuado.
“Realizamos uma abordagem sistêmica e identificamos várias semelhanças entre a resposta induzida pela vacina e a de uma infecção natural pelo vírus. Claro que, no caso dos imunizantes, eles promoveram a resposta imune sem causar o dano da dengue. No estudo, também conseguimos caracterizar algumas vias (de sinalização entre células de defesa). E a via do interferon (mediada por essa proteína antiviral produzida pelos leucócitos e por fibroblastos) se mostrou central, com vários genes importantes que surgem como novos biomarcadores da doença”, conta à Agência Fapesp Otávio Cabral-Marques, professor da Faculdade de Medicina (FM-USP) e coordenador da investigação.
Apoiado pela Fapesp por meio de dois projetos (18/18886-9 e 20/01688-0) e divulgado na revista Frontiers in Immunology, o estudo é o primeiro a identificar assinaturas imunológicas da dengue por meio de uma abordagem chamada vacinologia sistêmica, campo de pesquisa que busca decifrar um quadro global das respostas imunológicas à vacinação.
No trabalho, os pesquisadores analisaram 955 amostras de transcriptoma (conjunto completo de moléculas de RNA expressas) de pacientes infectados pelo mosquito da dengue e de participantes de ensaios clínicos de imunizantes contra a doença. Os dados foram obtidos de bancos públicos. Desse modo, foram identificados 237 genes diferencialmente expressos tanto nos casos de infecção natural, quanto de resposta às vacinas.
“Com base em 20 desses genes em comum, conseguimos criar um painel para distinguir a gravidade da doença, particularmente na fase aguda tardia. Por meio de técnicas de aprendizado de máquina, também foi possível classificar dez preditores (assinaturas imunológicas) de gravidade da doença nos casos de infecção natural e que são cruciais para a resposta imune antiviral”, explica Desirée Rodrigues Plaça, primeira autora do estudo e bolsista de doutorado da Fapesp.
Além de ser causada por quatro sorotipos virais (DENV1, 2, 3 e 4), a dengue é marcada por diferentes fases clínicas. Quando não é assintomática, a doença apresenta a fase aguda inicial, aguda tardia e convalescente.
De ponta a ponta
“Existe muita diferença, mas também conseguimos identificar muitas semelhanças entre a resposta imune induzida pelas vacinas e a provocada pela infecção natural. Afunilando o conjunto de dados, identificamos 20 genes comuns nesses dois processos, que são expressos de forma semelhante. São eles os responsáveis por enriquecer a via protetora do sistema imune, sobretudo, a via imunológica do interferon do tipo 1 e 2”, diz Plaça.
O interferon é uma citocina cujo papel principal é inibir a replicação viral. Como ele provoca uma reação em cadeia que afeta várias moléculas, o estudo mostrou que, embora as vias antivirais do interferon sejam responsáveis por uma defesa precoce (atuam na linha de frente), por meio de suas complexas funções biológicas a proteína prepara o terreno para o desenvolvimento de uma imunidade adaptativa robusta e duradoura.
“A via do interferon é muito importante na ativação da resposta adaptativa. Formada pelas células T e B (dois tipos de linfócitos), a resposta adaptativa causa a proteção permanente (o objetivo da vacina). Portanto, é de extrema importância entender quais genes associados a essa via seriam determinantes para produzir uma resposta adaptativa mais protetora”, explica Plaça.
O cenário completo
Com as informações obtidas no estudo, os pesquisadores conseguiram identificar estratégias terapêuticas que podem bloquear, ativar ou induzir genes envolvidos no processo da resposta imune, o que abre a possibilidade de investigar novos alvos terapêuticos para a doença.
No trabalho, os pesquisadores identificaram os principais genes (OAS2, ISG15, AIM2, OAS1, SIGLEC1, IFI6, IFI44L, IFIH1 e IFI44) envolvidos na orquestração de aspectos importantes da resposta imune adaptativa. Dessa forma, enquanto alguns genes (OAS2 e OAS) apresentam funções antivirais, outros (como o ISG15) restringem a replicação do vírus.
Os pesquisadores descobriram ainda que, nesse processo, existe um gene (AIM2) responsável por ativar o inflamassoma – um complexo proteico presente no interior das células de defesa que, quando ativado, produz moléculas que avisam o sistema imune sobre a necessidade de enviar reforços ao local da infecção –, iniciando respostas pró-inflamatórias cruciais para uma defesa antiviral eficaz. Cabe ao gene SIGLEC1 participar de interações de células imunes, facilitando a apresentação de antígenos e o reconhecimento imunológico adaptativo.
Induzidos pelo interferon, três genes específicos (IFI6, IFI44L e IFI44) estão associados à modulação da apoptose (morte celular programada) e à defesa antiviral. Já o gene IFIH1 atua como um sensor importante, que modula a resposta adaptativa aos vírus de RNA, como é o caso do DENV. Outros genes (IFIT5 e HERC5) apresentam papel importante na inibição da replicação viral mediada pelo interferon.
“O conjunto de genes relevantes em todo esse processo ressalta quão intrincada é a ligação entre as vias antivirais iniciais e os processos imunes adaptativos subsequentes. É como se as duas pontas de uma história se unissem”, comenta Cabral-Marques.
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